29 de março de 2024
Fernando Gabeira

A dama do Hermitage


Dizem que em São Petersburgo faz sol apenas uma semana por ano. Dei sorte, cheguei na semana certa. Dei mais sorte ainda em encontrar Natalia Brodski, na verdade o único contato que tinha na cidade, graças a Lena Pessoa, que vive em Paris.
Natalia trabalha no Museu Hermitage, iniciado com as obras compradas por Catarina, a Grande e aberto ao público século XIX. Ela me orientou por telefone a reconhecê-la e me esperou na porta do grande museu. Em tempos de Copa do Mundo, havia uma verdadeira multidão na entrada e dentro da instituição. Ela me levou diretamente ao departamento onde trabalha e me explicou o que faz.
No setor de Natalia, cada um é especializado num tipo de arte. A dela é a francesa. O departamento é algo que existe também no Louvre: dedica-se à formação de guias e conferencistas.
— Todos os anos, no inverno, fazemos um curso. Entram mais ou menos cem, um terço é aprovado.
Perguntei a Natalia sobre São Petersburgo e as memórias da guerra, e ela me disse:
— Eu era menina. De qualquer forma, escrevi um longo texto, de memória. Mando para você.
Natalia questionou o que me interessava no Hermitage. Eu sabia que existia ali um famoso quadro de Rembrandt: “A volta do filho pródigo”. Rembrandt, para mim, tem um dom divino. Aquela expressão, fiat lux, que no Brasil acabou virando marca de fósforo, deveria ser aplicada a ele. Rembrandt cria a luz e as suas nuances.
Mas eu não queria me desviar do foco do trabalho. Afinal, estudei a Rússia e queria saber da pintura de ícones, a maravilhosa técnica da perspectiva invertida na qual os santos parecem sair dos quadros. Os ícones provocam um êxtase parecido com uma viagem de drogas, segundo pesquisas neurocientíficas. De fato, eles transportam a uma outra realidade.
Natalia me explicou que, em termos de arte russa, Moscou é mais forte que Petersburgo. De fato, é lógico: Moscou é o centro da alma russa, ancorada na religião; Petersburgo, a face europeia do país.
Ainda assim, caminhamos entre guias e espectadores, camisas dez de várias torcidas, e ela me levou pelos salões até o jardim suspenso que Catarina mandou construir. Na sala do trono, ela sempre me lembrava: o trono é de Pedro, mas ele nunca ocupou esse palácio. Entre outras, existe uma sala inesquecível. Nela, estão os retratos de todos os grandes oficiais que participaram da guerra contra Napoleão.
Apesar de tudo, consegui ver alguns ícones russos e, realmente, não tenho explicação para uma técnica tão sofisticada, naquela época. São as maravilhas da arte sacra: talento e fé associados.
O que mais me impressionou no Hermitage é como o museu, do porte do Louvre em Paris, se tornou uma atração de massas nos nossos tempos. Visitam o Hermitage cerca de 2 milhões de pessoas por ano, muito mais do que um estádio de futebol.
Como lembrança, recebi o texto que conta a história da família de Natalia, vou traduzi-lo ao chegar ao Brasil. E ainda um belo livro onde ela comenta a mostra dos impressionistas franceses. E pensar que, em 1961, Natalia chegou ao Hermitage, formada em História da Arte, e disse: gostaria de trabalhar aqui. Aceitaram. Desde então, o Hermitage é o seu mundo.
A família judia sobreviveu a todos os sobressaltos do período comunista. O pai lutou na guerra, era respeitado. A casa de quatro cômodos, após a revolução, tornou-se uma habitação coletiva, com cozinha comum. Natalia passou incólume. E, como especialista, considera que havia escolas de arte em boa quantidade no período comunista.
Não comentamos o período do realismo socialista. Essa é outra história, que documentei na Galeria Tretyakov, em Moscou. Não levantei a questão da arquitetura nem da pintura no tempo de Stalin, embora tenha documentado a primeira nas ruas de Moscou, e a segunda numa exposição na Tretyakov.
Hermitage vem de ermitão, algo separado e protegido da turbulência do mundo. Talvez seja esse o segredo da sobrevivência de um acervo tão importante para a Humanidade.

Artigo publicado no Globo em 26/06/2018
Fonte: Blog do Gabeira

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

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