23 de abril de 2024
Colunistas Erika Bento

Carta mensal para Deus

Somos seres frágeis, nós humanos. Gostamos de pensar que somos indestrutíveis, até que batemos de frente com uma muralha.
Este obstáculo é diferente para cada um, mas é sempre relacionado ao contato próximo com a morte, como um lembrete de que o tempo pode acabar assim, num estalar dos dedos, num piscar de olhos, numa batida de coração, num suspiro. Este momento ocorreu comigo há algumas semanas quando tive um mini-AVC, um quase derrame ou um ataque isquêmico transitório. Não importa o nome, para mim foi uma pausa, um feitiço de suspensão a espera de um veredicto entre a vida e a morte.
Apesar de a decisão ter sido ao meu favor, caso contrário você não estaria lendo estas linhas, ainda me sinto ali, equilibrando naquela corda bamba sem conseguir tirar o olho do abismo sob meus pés. Horrorizada, luto contra os meus medos e antecipações de um futuro trágico, e procuro olhar para a frente, para o solo firme que me espera no final desta trajetória. Não está longe, posso até vê-lo, mas o medo de dar os próximos passos me paralisa e questiono se algum dia vou conseguir pisar em terra firme novamente. Agarro-me na gratidão de ainda estar de pé, mas não posso negar a força do abismo faminto tentando me puxar para a sua garganta escura.
Não consigo entender como fui parar aqui. De alguma maneira eu vacilei em alguma coisa e agora estou nesta situação. Ou talvez não seja culpa minha. Dizem que é genético e que agora entrei com os dois pés parte do grupo de risco, mas não importa o que os estudos dizem, agarro-me na certeza de que existe uma força maior do que a fome daquela escuridão. Uma força que venho tentando entender a alguns anos e que recentemente fiz as pazes com ela. Alguns a chamam de Deus. Eu prefiro não rotulá-la pois não se consegue aprisionar uma energia em uma definição.
Por alguns anos, eu estive perdida em dor e revolta e não tive a capacidade de entendê-la. Não podia admitir a incoerência da grandiosidade desta força e a aparente insignificância dada ao valor da vida humana. Fiz as pazes com isso.
Há muitas coisas que eu não entendo e tantas outras que passei a entender. Porém, equilibrando-me nesta instável linha entre a vida e morte, com a lembrança ainda fresca da metade do meu corpo adormecida, da minha mente sendo arrastada para uma névoa envolvendo minha lucidez, eu me pergunto se tenho sido arrogante demais ao confiar que ainda vou comemorar vários aniversários dos meus filhos e netos, que ainda vou aprender outros idiomas e habilidades, que ainda vou visitar lugar pela primeira vez, que ainda vou abraçar meus amigos e familiares, que ainda verei minha caçula atingir a maturidade e que, por fim, assoprarei a vela dos meus 100 anos de vida?
Por favor, não se ofenda com a minha arrogância. Sou humana, afinal de contas.
Não me julgue por querer viver esta vida o máximo que eu puder.
Sei que terei que me equilibrar nesta corda até o fim dos meus dias, mas farei o possível para me tornar a melhor equilibrista que puder e fazer da minha vida um grande espetáculo.
Até o próximo relatório de vida.
Admin

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